Vivendo no Japão #08: Ser ou não ser (otaku)?

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Yo! Após uma postagem mais subjetiva na semana passada, sobre a minha viagem para Nagasaki, esta semana, após uma conversa com o Juba, resolvi escrever sobre um tema mais ligado à minha pesquisa. Quem leu as primeiras postagens sabe que eu estou aqui estudando e pesquisando sobre Light Novels, e num sentido mais geral, sobre as formas de expressão daquilo que chamamos de “Media Mix”, ou seja, obras que coexistem em diversas formas de mídia. Ou como chamamos no Ocidente, “cultura otaku”. Já não é de hoje que fãs de cultura oriental fazem longas explicações sobre o significado original do termo otaku, e imagino que muita gente já está careca de saber. Mas hoje tentarei esclarescer sobre os usos do ponto de vista de minha experiência pessoal tanto no Japão quanto no Brasil, por meio conversas, aulas e artigos acadêmicos. Além do termo otaku, vou trazer considerações sobre alguns outros termos do universos “otaku”/”geek”, e como eles são por vezes ressignificados, ou utilizados erroneamente, quando deslocados de sua origem. Ou seja, na minha argumentação aqui farei uma distinção bem clara entre casos em que o termo ganha um novo significado quando chega em outro idioma com base em questões culturais, e casos em que a apreensão do termo é limitada ou equivocada. Espero que entrem nesse debate comigo.

Otaku: (otaco, weebo, otome, chuunibyou)

Esse é, sem dúvidas, um dos termos mais polêmicos do universo otaku. Pois bem, não vou entrar em explicações profundas sobre a origem do termo. No Brasil, assim como em praticamente qualquer país fora do Japão, Otaku é o termo que define um fã entusiasta de mangá, animê e outros elementos ligados a esse universo da cultura de entretenimento nipônica. O termo ganhou grande amplitude com o boom dos animês na década de 2000, podendo ser considerado uma tribo. Com a popularização da tribo, começam a surgir os novatos e os posers, ou seja, aqueles que assumem o rótulo na busca incessante por fazer parte de um “grupo”. Para “discriminar” estes foram criados os termos “Otaco” (no Brasil) e Weebo (em inglês), referindo-se a pessoas que assumem um comportamento exagerado na tentativa de mostrar sua paixão pela cultura nipônica. Estes costumam ter um conhecimento muito superficial sobre obras fora do eixo mainstream, ou ainda usar palavras em japonês fora de contexto e muitas vezes de forma equivocada, e podem ser identificados por agir como personagens de animê. Um pouco semelhante ao que no Japão é denominado de Chuunibyou. Antes de entrar propriamente nos significados dos termos em japonês, quero ainda mencionar o termo Otome, que em determinado momento surgiu erroneamente como a variação feminina de otaku, no cenário brasileiro, mas que, aparentemente já caiu em desuso.
Lucky☆Star.full.32397Quando a cultura otaku se estabilizou no Brasil, surgiu um movimento contra o termo, vindo daqueles que tinham um conhecimento mais próximo da cultura japonesa, alegando que no Japão o termo é pejorativo. Tal alegação veio embasada por diversos animês que retratavam o otaku de forma caricata, mostrando a discriminação sofrida por essa tribo. Primeiramente, o termo otaku, no Japão não se limita ao universo dos mangás e animês, ele diz respeito a qualquer tipo de hobby que é cultivado com fervor. Veja bem que estou tentando evitar palavras muito negativas como fanatismo ou obsessão. Isso porque acredito ser possível levar a sério um hobby de forma saudável, sem que isso leve a um comportamento fanático ou obsessivo. E pela minha experiência pessoal, a palavra otaku em si não carrega esse sentido negativo. E de onde vem essa sensação? Tenho bons amigos japoneses que ao ver meus botons, chaveiros, camisetas ou penduricalhas de celular, me chamaram explicitamente de otaku. E não havia nas palavras deles nenhuma carga de despeito ou desprezo, eles estavam apenas identificando minha característica de grande apreço por este hobby.

Não posso ignorar aqui, obviamente, que existe sim certo preconceito com o comportamento otaku, por uma parcela da população, mas o que quero dizer é que tal preconceito não está enraizado na palavra, e sim no uso que tais pessoas fazem dela. Também é necessário afirmar que existe uma face da cultura otaku que condiz com as caricaturas que vemos em animês como Genshiken, Bem-vindo à NHK e Lucky Star, e costumo pensar nestes como os “otaku hardcore”. São os consumidores de fanservice, frequentadores de maid-café, fãs assíduos de grupos de idols, que muitas vezes são identificados inclusive por sua vestimenta: camisa xadrez, mochila enorme, lenço na cabeça, etc. Estes muitas vezes estão associados com distúrbios comportamentais, como a síndrome Hikikomori (jovens que desenvolvem uma espécie de fobia ao contato social, e passam a maior parte de seu tempo encerrados em seus quartos), NEET (estágio avançado do comportamento Hikikomori, NEET designa alguém que não estuda ou trabalha, ou seja, rompeu com praticamente todo o contato social), Chuunibyou (traduzido como síndrome da oitava série, é o jovem que mantém um comportamento infantil, muitas vezes mesclando fantasia à vida cotidiana, e agindo como personagem de ficção em situações impróprias), etc.

24364_chuunibyou_demo_koi_ga_shitaiEstes são exemplos de desenvolvimentos não saudáveis do otaku, porém hoje, pelo que percebo, o Japão já reconhece que existem membros menos  radicais desta “tribo”. Isso provavelmente veio da aceitação do hobby como um hábito comum e saudável, pensamento que substitui o pragmatismo econômico, de que o adulto deve ser despojar de todo o lazer e dedicar-se unicamente à vida profissional, visão de mundo ainda muito difundida, porém que vem perdendo força com a ascensão da tão falada geração Y. Portanto, quero deixar claro que discordo de alegações de que o termo otaku é usado de forma errada no “exterior” (do Japão). A apropriação da palavra estrangeira, vem com uma ressignificação da palavra, afinal, não faria sentido usar o termo com o sentido de “fanático” (que seria a tradução mais próxima) por uma questão de economia linguística: se já há um termo corrente na língua que dá conta de descrever um fenômeno, não há necessidade de inserir um novo termo com exatamente o mesmo sentido. Ou seja, a ressignificação da palavra otaku como “aficionado por cultura pop japonesa” é perfeitamente compreensível.

Não concordo, porém, com o deslocamento do termo otome. Se otaku é uma limitação do sentido original da palavra, otome, como foi usada no Brasil por um tempo, é um equívoco. Otome originalmente nunca passou perto de ser um feminino de otaku, o termo pode ser visto mais como um tipo específico de otaku. O termo está intrinsecamente ligado aos otome games, jogos de simulação de relacionamentos, onde a protagonista feminina é cercada de rapazes atraentes (gênero popularmente conhecido também como harém reverso). Dessa forma, poderia-se dizer que Otome seria a versão feminina do otaku hardcore (desde que fique bem claro que o conteúdo pelo qual eles se interessam é do mesmo tipo, porém envolvendo gêneros completamente opostos). Paralelamente existe ainda o termo Fujoshi, que designa garotas que tem interesse por relacionamentos homossexuais , podendo estes relacionamentos ser consumados (como em séries BL), ou apenas fantasiados (a imaginação de um relacionamento homoerótico entre dois personagens que não são necessariamente um casal oficial – pode também se referir a pessoas reais). Estes dois termos não devem ser confundidos. Em geral, a otome apresenta comportamento fujoshi, porém nem toda fujoshi é otome. Existem muitas garotas que desenvolvem imaginação fujoshi, porém acompanham apenas séries shonen mainstream (como mangás da Jump, por exemplo). Enfim, a adoção do termo otome como “garota que gosta de mangá e animê”, ignora as especificidades deste termo, e por isso eu considero como um erro.
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Para figurativizar meu argumento de uma forma clara, digamos que o uso ocidental do termo otaku é uma limitação do termo original (otaku no Japão=fantático por algo – incluindo o fanático por animê e mangá, otaku fora do Japão=fanático por cultura pop japonesa), ou seja, é a seleção de um significado que já existia na palavra. Enquanto o de Otome é uma ampliação do termo original (otome no Japão=fã de determinadas obras com apelo para o publico feminino, otome no Brasil= garota fã de mangá e animê), ou seja, atribui um significado que não existia na palavra. Em resumo, um garoto que é fanático por Naruto, One Piece e Fairy Tail pode ser designado como Otaku tanto no Japão quanto fora dele, mas uma garota que é fanática pelas mesmas séries não seria chamada de otome no Japão. E por isso eu afirmo que é um uso equivocado no caso da segunda palavra, mas não da primeira. O japonês não é um idioma que faz distinção de gênero nas palavras, por isso, garotas fãs de mangá podem ser identificadas como otaku mesmo.

Para fazer um paralelo, a década de 2010 pode ser caracterizada pela queda da popularidade dos animês, e ascensão da cultura das produções para TV e cinema norte-americanas, fortemente impulsionada pela popularização do Netflix. Com o grande sucesso dos filmes de super-herói como a rentável franquia dos Vingadores, e o grande sucesso de público e crítica da série The Big Bang Theory, a cultura nerd, até alguns anos atrás duramente discriminada em todos os níveis sociais, foi restaurada sob a forma de cultura Geek, termo que veio dar um pouco de prestígio em contrapartida ao anterior, carregado de preconceito. Porém, neste caso também, surgiram inúmeros indivíduos que buscam a identificação com a tribo, antes de se aprofundar propriamente na cultura que ela envolve. Em suma, os fãs de TBBT que tem acesso à cultura geek, mais por meio desta série do que por experiência própria. Estes passaram a ser chamados discriminatoriamente de “Bazingueiros”, por sempre citarem o bordão do protagonista da série, muitas vezes completamente fora de contexto.

Enquanto escrevia este texto senti que há abertura para diversas contestações na minha argumentação, por isso, caso você tenha um ponto de vista diferente, ficarei feliz em dialogar e quem sabe aprofundar essa discussão. Eu pretendia ainda trazer considerações sobre o uso da palavra Mangá, e ainda dos gêneros de mangá no Japão e fora dele, porém, visto que minha explanação já ficou longa demais, tratarei destes demais termos na semana que vem. Até lá aguardo por debates sobre este texto e caso você tenha algum termo deste universo que gostaria de discutir, ou que tem alguma dúvida, deixe aqui nos comentários e eu tentarei abarcar na próxima postagem.

PS. Esta semana estou obcecado por dois presentes que ganhei. O primeiro deles é esse quadro feito a mão do Spike Spiegel, de Cowboy Bebop, e o outro é esse fofíssimo Chopper vestido com roupas do Trafalgar Law (meu personagem predileto). Este está sendo vendido na One Piece Store em comemoração ao aniversário do Chopper neste mês. Se esta não é a coisa mais fofa do universo, eu não sei o que é.

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Rafael Vinícius Martins
Rafael Vinícius Martinshttps://daisukeinkyoto.wordpress.com/
Jovem otaku/geek/nerd, mestrando em Literatura Comparada na Universidade de Kyushu, tendo como foco culturas de massa (animê, mangá, light novel). Membro do clube de acapella HarmoQ, e viciado em livrarias e lojas de produtos de animê. Facebook: https://www.facebook.com/daisuke.h0j0 Instagram: @daisuke_h0j0

3 COMENTÁRIOS

  1. Parabéns pelo texto cara, ficou bem explicado e neutro considerando que se trata de um assunto que costuma gerar discussões na internet e afins. Eu nunca gostei muito de rótulos como otaku, nerd, geek , mas a sociedade parece ter uma necessidade absurda de rotular e criar as chamadas “tribos” baseado nos gosto pessoais de cada um. A forma que você abordou a questão dos “posers” foi bem sutil e light por assim dizer, apesar de que nunca vou entender essas pessoas que fazem algo não pq gostam, e sim para estar presente em um meio social. Bom cada um é cada um. Eu consigo tranquilamente amar a cultura pop japonesa, assistir seriados da netflix, discutir se quem ganha é o time do capitão américa ou do Tony Stark, ao contrário daqueles que pensam que se gosta de um tem que odiar o outro. Ah, eu entendo as referências de TBBT tb. E finalmente alguém que explicou que otome não significa otaku fêmea. Se tem uma coisa que me incomoda é quando alguém faz uso de um termo, sem saber o significado e isso continua, pq ninguém se incomoda em pesquisar.
    Eita, falei bastante também. Bom, tanto faz, é isso cara. Excelente texto!

    • Obrigado pelo comentário. Eu gosto das tribos, pois esses agrupamentos facilitam encontrar pessoas com interesses em comum, mas acho uma besteira se limitar a um rótulo. Eu tbm, além de animês vejo series, leio quadrinhos não japoneses, leio literatura clássica e YA. Enfim, sou bastante variado em meus gostos. Mas quando me defino como otaku é por considerar este o meu hobby principal (além de ser meu campo de pesquisa hahahahaha)
      Valeu pelo feedback
      Espere pela semana que vem que vou desabafar sobre o como as pessoas têm uma visão errada dos gêneros de mangá, e vou dar um tapa na cara de quem acha que todo seinen é necessariamente melhor do que shonen.

      • KKKKK blz cara. Estou no aguardo.

        OBS: Mangás e animes tb são meu Hobby principal desde 2010, apesar de recentemente (tipo uns 2 anos) a cultura japonesa de forma geral me interessou, sendo um dos motivos para mim querer estudar no país

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