Crítica | O Menino e a Garça

Parecia surreal, mas Hayao Miyazaki saiu da aposentadoria e apresentaria seu novo filme durante as Olimpíadas em Tóquio em 2020. Só que um mundo parou por uma pandemia e com Olimpíadas atrasadas, o próprio filme acabou chegando aos cinemas apenas em 2023. E se por um momento parecia que não iríamos ver o filme tão cedo no Brasil, a Sato Company anunciou em dezembro em pleno lançamento de Godzilla Minus One, numa reta de crescimento de títulos recém exibidos no Japão e que seriam lançados quase que simultaneamente no Brasil.

Assim, 2024 começou com uma pré-estreia cheia de pompa, em que ‘O Menino e a Garça’ era apresentado para jornalistas e as principais entidades da comunidade nikkei no Brasil, além da presença da equipe do Consulado Geral de São Paulo e até mesmo da Embaixada Geral do Japão. Com capacidade de mais de mil pessoas, a Sato Company opinou reunir todas essas pessoas em seu próprio cinema, o Sato Cinema, localizado no bairro da Liberdade, no prédio do Bunkyo – Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e Assistência Social.

Num discurso emocionado, tanto Nelson Sato, presidente da Sato Company, como Renato Ishikawa, presidente do Bunkyo, reforçaram o compromisso de trazer o cinema para o bairro da Liberdade, como também o sucesso do cinema num espaço que era mal utilizado pela instituição.

Mas devo confessar aqui, que por mais louvável que seja o Sato Cinema utilizar as dependências tombadas do Bunkyo, o cinema acaba encontrando limitações em suas exibições. Seja pela ausência de cadeiras especiais para pessoas acima do peso, ou por cortinas para isolar a luz da rua, quando alguém entra na sala, até mesmo em alguns desavisados que aparecem em outras portas das dependências. Isso acaba afetando a experiência de apreciar um filme e torcemos bastante para que o sucesso faça com que mudanças aconteçam para trazer um maior conforto para população tão carente por cinemas de rua, como aqueles que frequentam o prédio do Bunkyo, no centro de São Paulo.

Ganhador do Globo de Ouro e indicado ao Oscar, o ‘O Menino e a Garça’ é uma obra a parte do Hayao Miyazaki. Diferente em sua história, mas trazendo alegorias icônicas e fáceis de identificar, o filme vem para homenagear a própria história do Ghibli e do Miyazaki, deixando aqui para o público em entender a sutileza nas entrelinhas e se deliciar com sua obra.

A história de ‘O Menino e a Garça’

Mahito Maki

Durante a Segunda Guerra Mundial no Japão, também referida como a guerra do Pacífico (1941 a 1945), temos o garoto Mahito Maki se desesperando e correndo entre o fogo para socorrer sua mãe. Resquícios de uma guerra que acabam não só a casa deles sendo bombardeada, como seu pai se casando de novo com a Natsuko e obrigando Mahito a se mudar para o interior.

Vale aqui explicar que Shoichi Maki, pai do Mahito, acabou se casando com a irmã da Hisako, mãe do Mahito. Por mais inusitado que possa soar esse tipo de casamento, acaba sendo plausível naquela época, o que faz com que Mahito se mude para o interior, deixando para trás a cidade de Tóquio e a morte de sua mãe. O filme não perde muito tempo explicando esse casamento, portanto se piscar, perdeu a breve explicação.

Shoichi está no interior para investir no desenvolvimento de fábricas. Sendo um industrial, podemos ver diversas vezes no filme, partes de carros e além de citações a construção de munições aéreas.

Paralelo a isso, Mahito precisa se acostumar que mora no interior numa propriedade da família por parte da mãe e da madrasta, além de voltar a frequentar à escola. 

Num processo de se conectar ali, Mahito estranha as senhorinhas que estão ali para ajudar a sua família, além de uma garça bem peculiar que o ronda quase todos os dias na propriedade.

Paralelamente, Mahito não se sente nem um pouco à vontade na escola, o que faz com que ele acerte uma pedra em sua cabeça, se ferindo e ficando de repouso em casa. Seu pai até ameaça os responsáveis da escola, mas não faz ideia que foi o seu próprio filho que feriu a si mesmo.

Assim, a garça vai ficando cada vez mais perto do Mahito, até que ele descobre que ela fala e que oferece ele reencontrar a sua falecida mãe. Deixando mais dúvidas do que respostas, Mahito também descobre uma antiga torre abandonada na propriedade, repleta de mistérios e que tem uma conexão com seu antigo tio-avô.

E se a história estava ficando estranha, ela nem começou, porque a garça vai se transformando em cada nova aparição, até aparecer um rosto de um homem na boca dela. Assim revelando que a garça era um homem-garça que tem um estranho poder de trazer a forma da mãe do Mahito de volta, mesmo que seja só um corpo estático ali presente.

É nesse momento que Mahito acaba indo parar em outro mundo subterrâneo, junto da própria garça e ali precisa enfrentar sapos, pelicanos e periquitos, o que faz com que ele precise ser forte.

Nesse estranho mundo, tudo é humanóide e Mahito encontrará outras pessoas ali presente. Numa jornada que se mistura entre as regras do tempo e espaço, Mahito será desafiado a encontrar o tio-avô, caso queira voltar para casa.

Muito além de ‘O Menino e a Garça’

Ir além da história seria estragar parte das surpresas ali no filme, porém podemos explicar um pouco sobre o que ele se propôs a contar. E uma das coisas fundamentais aqui em entender é que ‘O Menino e a Garça’ é autobiográfico. 

Mahito é o próprio Hayao Miyazaki quando criança. Tanto que o diretor se questiona se Mahito teria peso como protagonista e fala que todo universo fantástico ali da história é para contrabalançar a falta de carisma do próprio personagem inspirado em si mesmo. Outro ponto é que a relação de apegado à mãe também é inspirado na relação que Miyazaki tinha com a sua própria mãe. Vale aqui uma informação extra é que Miyazaki teria usado a personalidade da sua mãe para a maioria das suas protagonistas no passado, e aqui retorna na figura de Hisako.

Agora para entender os 3 personagens icônicos do filme, você precisa conhecer a própria história do Ghibli, entendendo que o filme não é uma homenagem para o público, mas para si mesmos. Fundado em 1985, o estúdio Ghibli tem três alicerces que são os diretores Hayao Miyazaki e Isao Takahata e pelo produtor Toshio Suzuki, sendo que os três estão representados no filme, em especial o relacionamento de Toshio Suzuki e Hayao Miyazaki na figura de Mahito e a Garça, enquanto o tio-avô seria o Isao Takahata.

Lamentavelmente, Isao Takahata veio a falecer em 2018 de câncer no pulmão, o que fez com que o peso da homenagem fosse revisto e reduzido em ‘O Menino e a Garça’. Por isso, o filme trouxe enfoque no Mahito e a Garça, talvez se afastando do livro original de 1937 escrito por Genzaburo Yoshino. Mas existem ecos na história que mostram principalmente a relação entre Miyazaki e Takahata inspirado no que realmente acontecia ali nos corredores do estúdio Ghibli.

A trama, aqui entrando um pouco nos spoilers, tio-avô procurava alguém para substituir a sua alcunha de defensor da torre ali nas terras da família. E parte disso, fez o que Mahito, sua mãe quando jovem e até sua tia coexistirem em momentos diferentes ao mesmo tempo ali na história. Podendo conviver com sua mãe, além de ver sua tia grávida, Mahito é desafiado pelo seu tio-avô em reorganizar aquele mundo, eliminando inimigos naturais ali (como pelicanos e periquitos), além de trazer um mundo melhor do que aquele ali criado.

As interpretações podem existir várias, que vão do Miyazaki em confiar na mão dos jovens por um mundo melhor, além de perpetuar o quão bom seria viver com sua mãe jovem, podendo ter uma relação totalmente diferente que mãe e filho. O não aceitar em criar o mundo nas regras de seu tio-avô, Mahito rejeita a tentação de construir um mundo melhor por conta própria e reconhece a importância de se apoiar nos outros.

Ao retornar para Tóquio, o tom de “conto de fadas” fica para trás e Mahito retorna ao seu cotidiano corriqueiro, agora forte pelas vivências que teve nas suas “férias” no interior, faz com que ele se reconstrua entendendo quem ele realmente é ao mesmo tempo que o Japão se reconstrói num momento pós-guerra.

O filme ‘O Menino e a Garça’ acaba ali, deixando sua marca, talvez sendo o mais diferente do Hayao Miyazaki, principalmente ao trazer tanto da sua vida pessoal ali na tela, ao mesmo tempo que os personagens ali na tela, ecoam muito do legado do próprio diretor, não o tornando tão distante do que conhecemos.

Devo confessar aqui que talvez uma das minhas maiores decepções no filme é que com um elenco tão estelar, a história se sobressai mais do que as atuações dos atores, o que faz com que não consigamos identificar tão facilmente em tela. A garça por exemplo é o ator e cantor Masaki Suda, enquanto Kiriko é a cantora e atriz Ko Shibasaki, além de Shoichi Maki ser o ator e cantor Takuya Kimura (da antiga boy band SMAP). Lembrando aqui que deles, Takuya Kimura já fez a voz do Howl em “O Castelo Animado”, mas aqui sua participação é bem pontual e talvez até apagada pelos recentes fatos que aconteceram no Japão em relação a agência Johnny & Associates.

Em relação a versão brasileira, assistimos a versão legendada e o filme traz uma ótima tradução e adaptação para o nosso idioma. Diretamente do japonês para o português, a tradução pensou e adaptou até mesmo o hierárquico do idioma original, que confesso que é algo bastante difícil de trazer para o português com fidelidade.

A Sato Company neste ponto está preferindo manter os mesmos profissionais, assim Mateus de Britto que já trabalhou para empresa com Kamen Rider Zero-One e Kamen Rider 555, está fazendo parceria com Gustavo Iracema, que fez Kamen Rider Kuuga e recentemente Godzilla Minus One na versão dublada. A dublagem, mesmo que só vista em trailers, tem direção do Rafael Pinheiro, que também foi o responsável pelo Godzilla Minus One, o que revela um movimento conciso em manter os mesmos profissionais em projetos-chave da empresa.

O Menino e a Garça

Direção e Roteiro: Hayao Miyazaki

Produção: Toshio Suzuki

Elenco: Soma Santoki, Masaki Suda, Ko Shibasaki, Aimyon, Yoshino Kimura, Takuya Kimura, Kaoru Kobayashi e Shinobu Otake.

Direção de Fotografia: Atsushi Okui

Trilha Sonora: Joe Hisaishi

Montagem: Takeshi Seyama

Gênero: Fantasia

País: Japão

Ano: 2023

Duração: 124 min.

Nota: 5 de 5

Nossos sinceros agradecimentos à assessoria da Sato Company e em especial ao Gustavo Iracema por nos convidar para uma sessão do filme para a produção desta matéria.

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Giuliano Peccilli
Giuliano Peccillihttp://www.jwave.com.br
Editor do JWave, Podcaster e Gamer nas horas vagas. Também trabalhou na Anime Do, Anime Pró, Neo Tokyo e Nintendo World.

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