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Cleo Diára é premiada em Cannes por O Riso e a Faca

Cleo Diára conquistou o prêmio de Melhor Interpretação Feminina na mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes 2025 por sua atuação em O Riso e a Faca, dirigido pelo português Pedro Pinho. A premiação, uma das mais prestigiadas do circuito autoral, consagra o trabalho da atriz cabo-verdiana em um longa que provoca, inquieta e emociona. Em cena, Diára é parte de um triângulo de tensões e afetos, contracenando com o português Sérgio Coragem e o brasileiro Jonathan Guilherme, numa história em que política e subjetividade caminham juntas.

Rodado entre a Guiné-Bissau e o deserto da Mauritânia, O Riso e a Faca é resultado de uma coprodução entre Portugal, Brasil, Romênia e França, com distribuição nacional pela Vitrine Filmes. A produção brasileira é assinada por Tatiana Leite, da Bubbles Project, nome importante do cinema independente atual. A narrativa acompanha Sérgio, engenheiro ambiental que se muda para uma metrópole na África Ocidental para trabalhar em uma estrada financiada por uma ONG. Lá, desenvolve um vínculo intenso, mas instável, com dois habitantes locais: Gui, interpretado por Jonathan Guilherme, e Diára, personagem de Cleo Diára.

Inspirado na canção homônima de Tom Zé — um paradoxo lírico entre lirismo e acidez — o título não é apenas referência cultural: é também chave de leitura para um filme que se equilibra entre opostos. Como a música do baiano, o longa de Pinho oferece um retrato caleidoscópico das contradições humanas e sociais. Da mesma forma que a canção aborda a busca por um equilíbrio caótico, o filme mergulha no confronto entre afetos e sistemas de dominação.

Uma equipe que atravessa oceanos

Além de Guilherme, ex-jogador de vôlei que se reinventou como poeta e ator em Barcelona, a produção reúne uma extensa equipe brasileira em cargos-chave. Entre eles, o diretor de fotografia Ivo Lopes Araújo (Tatuagem), a montadora Karen Akerman (O Lobo Atrás da Porta), o editor de som Pablo Lamar (A Flor do Buriti), e mais de trinta técnicos brasileiros. Na produção, nomes como Rodrigo Letier, da Kromaki Filmes, e Eduardo Nasser se juntam à coprodução com a Bubbles Project, firmando um elo criativo transatlântico que vai além da mera colaboração logística.

Outro destaque nacional é a presença do antropólogo Renato Sztutman, que aparece interpretando a si mesmo — um gesto que enfatiza a dimensão documental e reflexiva do projeto.

A direção de Pedro Pinho: entre a política e a poética

Pedro Pinho já havia chamado atenção da crítica internacional com A Fábrica de Nada (2017), vencedor do prêmio FIPRESCI na Quinzena dos Realizadores de Cannes. Com O Riso e a Faca, o cineasta aprofunda sua investigação sobre o poder, os corpos e o discurso num mundo atravessado pelas heranças coloniais.

O novo longa transforma o ambiente de uma obra parada — a estrada que liga o deserto à selva — em metáfora viva de um mundo em disputa. Uma narrativa marcada por ruídos de jipes brancos, festas de expatriados, escritórios climatizados e resistências locais. Nessa paisagem tensa, Diára, Gui e Sérgio vivem uma relação atravessada por assimetrias históricas, afetos genuínos e fragilidades contemporâneas.

A câmera de Pinho não busca respostas fáceis. Ela observa, escuta e resiste. A estrada em construção torna-se o rastro de um mundo onde progresso e ruína caminham lado a lado. O filme, como afirma o próprio diretor, é uma jornada polifônica, onde a fronteira neocolonial não é apenas geográfica, mas atravessa corpos, desejos e silêncios.

Um cinema que escapa às categorias

Mais do que uma narrativa política, O Riso e a Faca é uma experiência sensorial. Em meio ao calor opressivo e ao ruído do asfalto por fazer, brota a ternura — e Cleo Diára é o corpo que catalisa essa experiência. Sua interpretação dá carne a uma mulher que, embora marcada pelo peso das estruturas ao seu redor, nunca é reduzida a vítima. Ao contrário, Diára é presença, força e mistério. A atriz encontra no gesto mínimo, no olhar oblíquo e na pausa certa, a expressividade que faz sua personagem resistir, amar e reexistir.

O prêmio em Cannes é, portanto, o reconhecimento de um cinema que ousa pensar e sentir o mundo com complexidade — e que encontra, na performance de Diára, um eixo potente para suas múltiplas camadas.

Caminhos que se cruzam

Entre desertos e selvas, entre Europa e África, entre o riso e a faca. O novo longa de Pedro Pinho é uma obra que não se deixa capturar por categorias fáceis. É cinema em estado bruto e lírico, político e íntimo. É um filme sobre construção: de estradas, de vínculos e de futuros possíveis. E Cleo Diára, com seu prêmio em Cannes, ajuda a abrir essa estrada.

Giuliano Peccilli
Giuliano Peccillihttp://www.jwave.com.br
Editor do JWave, Podcaster e Gamer nas horas vagas. Também trabalhou na Anime Do, Anime Pró, Neo Tokyo, Nintendo World e Jornal Nippon Já.

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