Vivendo no Japão #07: Viajando no Tempo

12316586_1011035005624789_793566352238570501_nAcordo em cima da hora. Um banho rápido, engulo um pão de melão e empurro com um copo de café enquanto troco de roupas, coloco os últimos itens na mala e corro escada abaixo onde meus amigos me esperam para começar essa viagem. Neste momento eu não esperava que o final de semana ia me trazer tantas surpresas.

Ônibus, metrô, McDonalds e finalmente embarcamos no ônibus rodoviário que nos levará ao nosso destino: Nagasaki. Tendo vivido por um ano em Kyoto pode parecer estranho o que você dizer agora, mas partindo de Tenjin, o centro da metrópole Fukuoka, a sensação de chegar em Nagasaki é a de ter embarcado numa máquina do tempo. Vou me explicar. Kyoto obviamente tem uma aura mágica tradicional. Tudo na cidade é cuidadosamente planejado para manter a atmosfera que os turistas esperam da antiga capital do Japão e até hoje um dos principais destinos turísticos. Porém em Kyoto o tradicional parece harmonizar e mesclar-se com o moderno. Nagasaki, por outro lado, tem uma atmosfera completamente histórica. Nas ruas, bondes elétricos ainda são o principal meio de transporte (ao menos na região central), fachadas de lojas, ruas, outdoors, tudo passa uma sensação de cidade que cresceu sobre a necessidade, não há uma aparente preocupação em mostrar-se belo, limpo e asseado. Cidade montanhosa, de alguns ângulos a visão dos bairros não é muito diferente de um bairro de periferia de São Paulo, onde todas as casas parecem muito juntas e nada muito planejado. Enfim, Para um indivíduo que viveu a maior parte de sua vida no século XXI, o cenário desperta quase que uma nostalgia de uma outra era.

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Enquanto caminhamos ao hostel, onde outro amigo nos espera, me admiro com essa sensação tão peculiar que a cidade me passa. É diferente de qualquer experiência que eu tenha tido com viagens anteriormente. Libertos do peso de nossas bagagens, agora podemos explorar os arredores. Eu, tendo partido sem fazer qualquer pesquisa, tendo em mente apenas a noção de que Nagasaki foi a segunda cidade japonesa a ser devastada por uma bomba atômica norte-americana no final da Segunda Guerra Mundial, não sei o que esperar. Essa é uma experiência com a qual não estou acostumado. Geralmente quando escolho um destino para viajar faço questão de traçar planos, saber o máximo a respeito do local e dos arredores, salvar mapas e tudo mais. Mas nessa viagem eu estava apenas acompanhando meus amigos, então confiei a eles as decisões e me permiti apenas seguir o fluxo.

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Saímos do hostel , viramos uma esquina e estamos em Chinatown. Eu nem sabia que tinha uma Chinatown em Nagasaki. Bem, ao menos agora faz sentido os dragões chineses e pentagramas que estão por todos os lados da cidade. Também faz sentido o prato típico da cidade ser Chanpon, um prato japonês de origem chinesa. Após contornarmos ruas e esquinas chegamos a um templo confucionista, o sol prestes a se pôr. Eu não me recordo de ter visitado um templo confucionista antes, e conhecer esse reacendeu-me a vontade de pesquisar sobre o confucionismo, pois além de muito belo, é repleto de símbolos e imagens bastante fortes, que instigaram minha curiosidade. Completamos então o turismo do dia visitando um museu de arte. E pela primeira vez eu me dou o direito (e ao trabalho) de observar, admirar e quem sabe até tentar entender as obras de arte. Caramba! Nunca ouvi falar desse pintor, mas a arte dele é tão expressiva pra mim! Mas olha só, eu não imaginava que eu pudesse me interessar tanto por obras do Salvador Dali! Caramba,por que as pessoas criticam arte contemporânea? Essa é uma das exposições mais interessantes que já vi!

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Jantamos, jogamos até tarde da noite, dormimos, pois amanhã será um longo dia.
Hoje é o principal dia de nossa viagem. Começamos pelo Parque da Paz, um recanto natural repleto de memoriais, presente de condolências de diversos países. Subimos uma longa escada ornada por flores multicoloridas, e logo o grupo se dispersa para observar e fotografar os mais diversos pontos do parque. Paro diante de uma fonte e é aí que a realidade me inunda subitamente.

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“Não suportava mais tanta sede.
Algo oleoso flutuava na superfície da água,
Mas eu queria tanto aquela água,
Que bebi mesmo assim.” – Memórias de uma certa garota naquele dia.
Não sinto tristeza, nem vontade de chorar. Sinto um vazio. Uma única dúvida que elimina qualquer convicção: “Por quê?”.

Esse pequeno relato, lido diante de uma bela fonte jorrando água límpida, é uma imagem que fica marcada à ferro em minha retina. Todos aqueles monumentos em memória das vidas perdidas, doados por outros países em sinal de suas condolências… o que tudo aquilo significa? Ouvimos falar nos números de mortos, mas quantas vezes pensamos que cada 1 daqueles cadáveres, era uma pessoa, uma história, uma família, que deixou de existir por questão de “força maior”.

Nos dirigimos então ao um observatório espacial, para tomar um fôlego. Em seguida, fazemos uma curta visita a uma igreja católica patrimônio cultural da cidade. E finalmente nos dirigimos ao Museu da Bomba Atômica de Nagasaki. Entre destroços da cidade, vestígios da explosão, explicações científicas sobre o funcionamento da bomba e seus efeitos, e objetos que foram encontrados no local, num primeiro momento o que mais me chama a atenção são os relógios. Relógios de parede encontrados destruídos, mas ainda assim marcando o horário exato do massacre. Esses relógios me fazem enxergar as inúmeras vidas cujo tempo foi para sempre paralisado. Próximo ao fim da exibição, passo então pelo corredor com diversos relatos de sobreviventes. Ser leitor é uma das minhas características como pessoa, e por isso, geralmente palavras me tocam muito mais do que imagens. Em meio a outras tantas histórias igualmente desesperadoras, relatos de crianças que se viram sozinhas no mundo, encontro a narrativa completa da garota da fonte. Mais adiante um pergaminho ilustrado mostra o cenário da catástrofe, que parece saído de um livro de fantasia, mas infelizmente, não é.

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Saio do museu com uma sensação de desilusão. De que adianta o sucesso de uma franquia como Hunger Games, se a maioria do público parece não notar o que está sendo ali criticado. Mas desilusão nunca foi freio para mim. Pelo contrário, saio com vontade renovada de fazer a diferença. Mas por hoje, vou tomar um delicioso café acompanhado de Cheesecake no Starbucks, vou visitar um incrível jardim com iluminação natalina, de uma casa colonial européia, de onde posso ainda ter uma visão privilegiada do topo da cidade. E terminar minha noite gastando toda minha voz no karaokê.

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Poucas horas de sono, mas não há tempo a perder. Estamos cansados e queremos casa. Mas ainda temos uma manhã para aproveitar em Nagasaki, e uma manhã ainda é tempo de muitas surpresas. Nossa última parada antes de partir é Dejima. A ilha que antigamente funcionava como porto internacional é hoje um sítio histórico onde podemos ver a forte presença de holandeses e portugueses, que chegaram ao Japão no período da expansão colonial europeia. Como se o ciclo da viagem se completasse, esse local me fez compreender finalmente a cidade de Nagasaki (mas não que eu consiga colocar em palavras, por isso, quando tiver a oportunidade, visite você mesmo e tire suas próprias conclusões, garanto que vale a pena). Mais uma vez um relógio me chama a atenção (é algum tipo de obsessão?). Ele mostra uma outra forma de calcular o tempo, diferente do padrão ocidental que se tornou padrão mundial. E isso me faz pensar, como todas as nossas percepções do mundo são pautas por um conjunto de elementos culturais predeterminados.

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Volto para Fukuoka com um turbilhão de novas sensações, reflexões e pensamentos. Talvez nada mude em minhas atitudes, mas sinto que encaro o mundo com um olhar renovado. Às vezes visitamos o passado para tentar entender o presente ou perceber o futuro. Mas neste caso, visitar o passado me faz entender ainda menos o presente, mas me impele a tentar de novo e de novo.

PS. Minha obsessão desta semana é  ̶u̶m̶ ̶r̶e̶l̶ó̶g̶i̶o̶ Pokémon TCG! Desde que cheguei aqui no Japão tenho voltado a colecionar os cards de Pokémon, que há tantos anos eu não jogava. E ao voltar de Nagasaki, meu amigo e eu resolvemos sair da aposentadoria, compramos um deck e voltamos a jogar. Eu estou absolutamente obcecado, me controlando para não comprar um monte de cartas, pois natal está chegando e Tokyo me espera (mas tá difícil).         DSC_1289

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Rafael Vinícius Martins
Rafael Vinícius Martinshttps://daisukeinkyoto.wordpress.com/
Jovem otaku/geek/nerd, mestrando em Literatura Comparada na Universidade de Kyushu, tendo como foco culturas de massa (animê, mangá, light novel). Membro do clube de acapella HarmoQ, e viciado em livrarias e lojas de produtos de animê. Facebook: https://www.facebook.com/daisuke.h0j0 Instagram: @daisuke_h0j0

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